quarta-feira, julho 27, 2011

Pequeno dicionário de termos médicos - Hemianopsia (Texto longo - tenha paciência)

Você já ouviu este termo antes? Hemianopsia é uma palavra bastante usada em neurologia, e indica uma alteração da visão. Mas antes de discutirmos isso, vamos rever anatomia e funcionamento (fisiologia) do sistema visual humano.

O olho é uma estrutura complexa, sendo um globo levemente alongado (uma elipse, por assim dizer), formado por duas partes, uma parte anterior (câmara anterior) e uma posterior (câmara posterior). O olho funciona como uma câmera fotográfica, recebendo a luz que vem refletida dos objetos que atravessa os meios transparentes do olho (córnea, cristalino ou lente, humor aquoso, pupila, humor vítreo) e chega à retina (aqui a imagem é representada de cabeça para baixo e bem menor do que realmente é - aqui cabem algumas leis físicas de óptica e lentes que poderão ser discutidas depois). Da retina, partem nervos que adentram o cérebro e vão até a parte mais posterior do mesmo, o córtex occipital ou calcarino, onde esta imagem será analisada e vista como deve ser.

http://www.nlm.nih.gov/medlineplus/ency/imagepages/1094.htm
Muito bem. Observe à esquerda da figura uma estrutura amarelada saindo do olho, onde em inglês se lê optic nerve - este é o nervo óptico, o segundo nervo craniano, mas que na verdade não é nervo, mas uma extensão do próprio cérebro. A retina se desenvolve do cérebro (que, aliás, durante a fase de desenvolvimento do embrião, desenvolve-se juntamente com a pele. Você sabia disso?), e o resto do olho se desenvolve de tecidos ditos mesenquimais, ou seja, tecidos que formam estruturas de suporte no corpo, como ossos, músculos e cartilagens.

Esse "nervo" segue por baixo do cérebro, e lá no meio dele, na frente de uma extensão do cérebro chamada de tronco cerebral, ele entra definitivamente no cérebro, indo para o pólo posterior do cérebro, os lobos occipitais. Observe uma representação disso abaixo:

 http://www.doutorcerebro.com.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=24:neuriteoptica&catid=25:esclerose-multipla&Itemid=17

Essa figura mostra o nervo óptico na órbita, saindo do olho, e indo para o cérebro. O nervo é esta estrutura amarelada ( os nervos nas figuras são sempre desenhados em amarelo, apesar de que os nervos não são amarelos. É somente uma forma de ajudar a discernir entre o que e o que não é nervo).

Lá vai mais uma figura:

http://www.msstrength.com/wp-content/themes/zen/images/optic_nerve.jpg

Observe que o nervo entra no cérebro lá atrás. Pois é, o nervo vira o que chamamos de trato óptico, estas linhas negras sinuosas no cérebro, indo para o córtex occipital visual, o território em roxo no cérebro acima. O trato óptico não é assim, claro. Isso é só uma representação gráfica para ajudar você a entender o que ocorre aqui.

No córtex occipital, a imagem que foi vista na retina pequena e invertida é dissecada, analisada, e mostrada a você como você a vê. Logo, o que você vê é uma filtragem da imagem que entra no seu olho e que é feita inteiramente no cérebro. Perfeito, não?

Mas o que é hemianopsia???? E onde que tudo isso que eu li entra nessa história? Como disse antes, um pouco de anatomia ajuda você a entender o que ocorre no seu corpo.

Bem, suponhamos que você não entenda patavinas de óptica, mas se entender, estamos em casa. A sua retina pode ser dividida, como um círculo, em quatro partes, mas não iguais, por duas linhas, uma vertical e uma horizontal, passando justamente pelo local onde o nervo óptico se origina (chamado de disco óptico), os quadrantes. Observe abaixo:

http://www.coll.med.br/uploads/images/nervo_optico4.jpg

As duas bolas coloridas lá em cima são a representação gráfica da retina. Cada setor colorido é um quadrante, e eles não são iguais. Temos os setores temporais, os mais laterais, mais próximos da parte de fora do rosto, e os nasais, mais mediais, ou seja, mais próximos do nariz. Cada setor temporal e cada setor nasal é dividido em quadrantes superiores e inferiores. Daí temos, quadrante temporal superior, temporal inferior, nasal superior e nasal inferior de cada lado.

Muito bem, entendido até agora? Vamos adiante, que a caminhada é longa.

O nervo óptico leva as informações de cada quadrante para o cérebro, da seguinte maneira. Os nervos que vêm dos quadrantes temporais levam a informação para o cérebro do mesmo lado (quadrantes temporais direitos levam a informação para o córtex occipital direito, ou sejam, passam direto pelo quiasma óptico, o cruzamento de fibras coloridas que você vê logo acima na figura anterior). Já os nervos que trazem informações dos quadrantes nasais cruzam pelo quiasma para o lado contrário (isso mesmo, informações dos quadrantes nasais de um lado vão para o cérebro do outro lado).

Mais outra coisa, que você pode ver na figura acima. Você observa que a luz que vem de fora entra na retina de dentro? E o contrário, ou seja, a luz que vem de perto do nariz entra na retina de fora, também ocorre? Da mesma forma, a luz que vem de cima entra pela retina de baixo, e a luz que vem de baixo pela retina de cima! Sim, isso mesmo, ou seja, a informação visual que chega ao seu cérebro cruza duas vezes, duas vezes, antes dos olhos, virtualmente, quando ainda são só raios de luz, e dentro do cérebro, na junção entre as fibras, no quiasma óptico!

Certo, entendeu até agora? Se não entendeu, mande um comentário falando o que não entendeu, e eu refaço o texto para você entender.

Certíssimo. Então a hemianopsia não é um distúrbio visual, por que não afeta o olho, mas as vias neurais que saem do olho? É um distúrbio visual, mas considerado central, ou seja, afeta o cérebro e suas vias. Se afetasse o olho, seria chamado de periférico.

E o que é uma hemianopsia? Veja abaixo:

http://en.wikipedia.org/wiki/Homonymous_hemianopsia

Uma pessoa, vendo Paris de cima, se tivesse uma hemianopsia, veria a paisagem assim, como você vê nesta figura aí em cima. Uma parte da imagem é cortada. Neste caso, levando-se em conta que a torre Eiffel está no lado esquerdo da figura, o paciente teria uma hemianopsia homônima direita! Peguei pesado? Vamos explicar. Veja abaixo.

http://www.sistemanervoso.com/neurofisiologia/07_images/07_clip_image002_0000.jpg
Você está vendo um cérebro cortado de frente para trás, e de cima para baixo. Observe as radiações ópticas, estas linhas roxas e amarelas saindo dos olhos, e correndo pelo cérebro até a parte de trás dele, o lobo occipital. Estas radiações, como já comentado, estão dentro da massa cerebral, e não podem ser individualizadas sem técnica apropriada. Quando ocorre lesão cerebral em algum lugar das radiações ópticas, ou mesmo no quiasma óptico, ocorre alteração da transmissão da imagem da retina ao cérebro.

Na figura acima, as linhas horizontais exemplificam locais de lesão. E estas lesões podem ser por derrames, tumores, traumas, acidentes, etc... Os círculos com componentes escuros ao lado demonstram como um paciente com estas lesões veria o ambiente caso estivesse observando um fundo branco. A hemianopsia homônima é a alteração mais baixa, causada por lesões nas radiações ópticas. Observe que uma lesão do córtex occipital direito leva a uma hemianopsia homônima esquerda (o nome homônima é por que temos perda visual de campos complementares, ou seja, o temporal de um lado e o nasal do outro; lesões do quiasma  (que geralmente comprimem o quiasma de dentro para fora, comprimindo a parte de dentro das vias ópticas) levam a perda de campos temporais por lesão das vias nasais, e as hemianopsias aqui produzidas são chamadas de heterônimas).

Mas por que a lesão de um lado leva a perda visual do outro, se as vias temporais vão para o mesmo lado, e as nasais é que cruzam? Por que a luz se cruza antes de chegar ao olho. Isso mesmo! A luz cruza de um lado para outro, e de cima para baixo. Logo, se você perde a retina inferior, você tem perda visual superior daquele lado, e vice-versa. Da mesma forma, se você tem lesão de uma via (no córtex), com perda de via temporal de um lado e nasal do outro, o que ocorre é a perda de campos opostos, justamente por que a luz que vai para a retina temporal vem do campo nasal, e a que vai para a retina nasal vem do campo temporal. Complicado? Não!

Da mesma forma, temos as hemianopsias altitudinais, ou seja, perda de campo superior ou inferior, e as quadrantopsias, quando não é o hemicampo todo que é perdido, mas só a parte de cima ou a de baixo.

Bem, espero ter ajudado os interessados a resolverem esta questão. Qualquer dúvida, mande um e-mail para mim (sekeff@hotmail.com) ou faça seu comentário. Terei prazer em ajudar.