sexta-feira, agosto 29, 2014

A ameba devoradora de cérebros

Com um título assustador como esse aí acima, você pode querer passar para o post seguinte. Mas fique um pouco e leia mais.

Tem havido nos EUA surtos de uma ameba que "come cérebros". Uma ameba zumbi???

Não. Na verdade, não! Essa é uma forma de inflamação das meninges e do cérebro, uma meningoencefalite amebiana. 

Ameba não é aquele seu colega de faculdade, ou aquele seu amigo que de tão lerdo (ou tonto) ganhou o apelido de ameba. Nem é aquela massa de forma indescritível que você comprou, digo, o Papai Noel deu para o seu filho no Natal passado. A ameba é um protozoário. 

Protozoário?? Ai, ai,  mais um nome difícil. Mas sério, os protozoários são seres de uma célula só, unicelulares, mas cujas células são bastante desenvolvidas, de tal forma que hoje, são considerados as formas mais primitivas de animais (chupa, estafilococo!) (referência).

A ameba está representada abaixo:

http://www.grupoescolar.com/a/b/9FEB6.jpg     Aaaaaaaarrrrrrrrrgh
Essa aí em cima é uma ameba. Há várias espécies de amebas (assim como eu conheço vários amebas por aí). A que mais causa as famosas diarreias e amebíases da vida é a (prepare-se) Entamoeba histolytica (que está aí embaixo):

http://www.ufrgs.br/para-site/siteantigo/Imagensatlas/Protozoa/Imagens/histolytica.jpg         Mais bonitinha que a anterior
 Já faz tempo que se conhece a capacidade desses pequenos (e aparentemente inofensivos, sqn) animais em causar doenças. Os primeiros 45 casos de amebíase foram descritos em 1912. Mas somente em 1973 que as amebas que causam sintomas neurológicos (ou seja, as primas ricas) foram descobertas, a Naegleria flowleri e a Acanthamoeba, além da Balamuthia mandrillaris e a Sappinia diploidea, estas descritas em 2003 (Gente, que é isso??? Abriu-se o dicionário na seção de xingamentos??). A própria Entamoeba histolytica pode causar meningoencefalite.

 
https://www.msu.edu/~rmorning/images/parasites/Naegleria_fowleri_100X_03.jpg
Acima, a causadora dos casos mais frequentes de meningoencefalite amebiana, a Naegleria fowleri (seta). Ah, você está vendo essa celulazinha à esquerda e abaixo destas duas amebinhas. Isso, mais lá embaixo, há duas células, menores e com prolongamentos, com o centro escuro. Está vendo? Bem, estes são neurônios normais. 

Abaixo, a imagem de um cérebro contaminado com essa ameba (imagem forte, sugiro que pegue um saco de vômito... brincadeirinha):

http://www.cdc.gov/parasites/images/naegleria/02-3289-05.jpg
Observe acima os pontos vermelhos indicado inflamação e hemorragia, localizados mais na porção anterior do cérebro. A localização é anterior porque a via de entrada destas pequenas invasoras é o nariz (ou a boca), que fica logo abaixo da porção frontal, anterior, do cérebro. 

http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/7/7e/Naegleria_fowleri_infection_gl.png
Acima, um panfleto demonstrando o ciclo de vida da ameba, e a sua entrada pelo nariz. 

A ameba não está de bobeira por aí, mas é contraída ao nos banharmos em locais onde ela habita. Apesar de haver ameba até na Conchicina, a Naegleria está mais presente na água parada, especialmente morna, e convive com os famosos coliformes fecais (ou seja, lagos ou lagoas onde há dejetos humanos ou animais, ou esgoto). Outras formas de ameba contaminam o solo, como a Acanthamoeba e a Sappinia

O quadro é dominado por um abscesso cerebral, ou seja, uma coleção dentro do cérebro contendo pus e inflamação. Há múltiplos abscessos, associados a inchaço cerebral (edema cerebral). Confusão mental, sonolência, coma, crises epilépticas, meningite, rigidez de nuca, dor de cabeça, desequilíbrio (quando a lesão é no cerebelo), febre, perda de apetite, emagrecimento, diarreia, fígado e baço grandes (hepatomegalia e esplenomegalia, respectivamente), dor abdominal e falta de ar podem ocorrer nos casos de amebíase grave com manifestações cerebrais.

Nos casos em que a Naegleria ou a acanthamoeba são os atores principais, pode haver doença unicamente do cérebro (meningoencefalite amebiana primária), afetando mais crianças e adultos nos meses mais quentes (quando esse pessoal gosta de cair na água parada para tomar banho e brincar de jogar água uns nos outros). Os sintomas aparecem cerca de 1 semana após o contágio. O início é súbito, com dor de cabeça, náuseas, vômitos, febre e rápida evolução para coma (lembrando meningite bacteriana grave). A doença é grave, e pode matar em 24 a 48 horas. 

Há formas de Acanthamoeba que causam uma meningoencefalite mais arrastada e crônica, que progride por semana a meses. A infecção pode ocorrer em pessoas saudáveis.

A amebíase é uma doença intestinal comum, e muito raramente evolui com sintomas neurológicos. Veja que somente casos específicos de amebas específicas podem evoluir com sintomas neurológicos. Em geral, pessoas que são acometidas por encefalite amebiana tiveram contato com água ou alimentos contaminados, ou banharam-se em locais de água parada infectada com o protozoário.

Há casos de pessoas que portam essas amebas (como a Naegleria) em seus corpos sem que essas lhe causem doença. Ou seja, a doença não ocorre em 100% das pessoas contaminadas, o que sugere que nosso sistema imunológico segure a ameba (mas em alguns casos, essa defesa acaba falhando).

 A prevenção dessa doença é a melhoria as condições sanitárias, como sistema de esgoto, tratamento do esgoto, água encanada,usar somente água filtrada para consumo. Além disso, medidas práticas como evitar colocar a mão suja na boca, o uso de cloro no tratamento das piscinas, evitar banhar-se em água supostamente ou sabidamente contaminada.

Pequeno Dicionário de Termos Médicos - Enxaqueca basilar

O nome enxaqueca basilar, de acordo com a nova classificação da Sociedade Internacional de Cefaleia, mudou para Enxaqueca ou Migrânea com Aura do Tronco Cerebral (MATC).

O tronco cerebral é uma estrutura composta de vários núcleos e vários agrupamentos de fibras que conectam o cérebro ao cerebelo, à medula e ao resto do corpo, e possui funções relacionadas à visão, equilíbrio, funcionamento da face, sensibilidade da face, fala, deglutição (o ato de engolir), além do controle da respiração e da consciência. A artéria basilar é uma artéria que provem da união das artérias vertebrais, e constitui-se na artéria mais importante que irriga o tronco cerebral (daí o nome antigo "Enxaqueca Basilar"). 

https://encrypted-tbn3.gstatic.com/images?q=tbn:ANd9GcTYGZFS4tRFyT5GDC1F8iLuhhKdrUQSapT4cGHC_ALg1KgLzEnPLg
Acima, você vê a artéria basilar com uma seta azul.

A MATC foi primeiramente descrita por Bickerstaff em 1961, e por muito tempo, essa forma de enxaqueca foi conhecida como enxaqueca de Bickerstaff. Aretaeus da Capadócia, médico da Grécia antiga, que viveu no século I depois de Cristo, escreveu o que, para Bickerstaff, foi o primeiro relato da MATC:

Se a escuridão possuir os olhos, e se a cabeça girar em tontura, e se os ouvidos soarem como os sons de rios produzindo um grande barulho, ou como o vento quando ecoa por entre as velas, ou como o bater de canos, ou como o chacoalhar de carruagens, nós chamamos a afecção escotoma (ou vertigem). O modo de vertigem é um peso na cabeça, flashes de luz nos olhos, juntamente com escuridão, ignorância de si mesmo e daqueles ao redor de si, e se a doença progredir em aumento, os membros afundam-se e o paciente cai ao chão; há náuseas e vômitos de fleugma ou de matéria biliar negra ou amarela (Araeteus, em tradução livre por mim).

No entanto, foi o famoso médico inglês William Richard Gowers quem descreveu o primeiro caso de MATC em 1907, em uma garota de 18 anos de idade, na qual perda visual bilateral com fosfenas, pontos brilhantes de luz, e escotomas, pontos enegrecidos, apareciam no campo visual; posteriormente, apareciam vertigem e sensações anormais nos membros (disestesias) que duravam 10 minutos. Ela, então, ficava inconsciente por 15 minutos, e os sintomas regrediam logo após, com o aparecimento de uma dor de cabeça intensa que durava 2 horas.

O termo "Enxaqueca Basilar" foi criado em 2004, e seu nome foi novamente modificado 9 anos depois, como visto no início deste post. 

Os sintomas que os pacientes com MATC apresentam podem aparecer entre os 10 e 20 anos de idade ou entre os 20 e 30 anos de idade. Antes e após isso é raro, mas há relatos da doença em crianças. A MATC pode ocorrer com outras formas mais comuns de enxaqueca. 

Fatores que desencadeiam as crises podem ser percebidos por mais da metade dos pacientes. Emoções, estresse, menstruação, mudanças climáticas (não me perguntem o porquê disso!), traumas cranianos, certos tipos de alimentos e uso de anticoncepcionais têm sido relatados nos artigos científicos. 

A aura, como sempre, dura de 5 a 60 minutos, mas pode se estender por 3 dias. A aura mais comum são os sintomas visuais, descrito em post anterior. Entre as auras, há perda de campo visual, fosfenas, escotomas, alucinações (ver como se algo estivesse maior (macropsia) ou menor (micropsia)), visão dupla (a famosa diplopia), vertigem, tontura, ataxia (desequilíbrio), zumbido, disartria (dificuldade em articular as palavras), dormência e formigamento nos membros, desmaios, e mesmo coma. 

Crises epilépticas podem ocorrer em raros casos e complicar o diagnóstico. Episódios de derrame (AVC), especialmente em casos não tratados, podem ocorrer. A dor de cabeça costuma ser na região de trás da cabeça (occipital), vir com náuseas e vômitos, com luz e barulho incomodando (foto e fonofobia, respectivamente). Em menos de 5% dos casos, a aura pode vir sem dor de cabeça.

A doença é considerada uma variante de enxaqueca, mas há quem considere essa uma doença a parte. Há associação com vários genes, mas ainda não há um gene responsável pela doença descrito. 

Dez porcento dos pacientes com enxaqueca com aura em uma população dinamarquesa tinham MATC (ou seja, mais comum do que vemos na prática). 

Quando estamos diante do primeiro episódio de MATC, nós médicos nos preocupamos em descartar alguma lesão cerebral antes de fechar o diagnóstico de enxaqueca. Muitos pacientes acabam por passar por testes como tomografias, ressonâncias e eletroencefalogramas atrás de derrames ou quadros epilépticos antes de fecharmos o diagnóstico de MATC. 

A doença parece melhorar com o avançar da idade do paciente, ou seja, após os 30 anos de idade. O prognóstico é bom. E o tratamento deve se voltado para o uso de medicações que visem diminuir a intensidade e a frequência das dores (os profiláticos), já discutidos em post anterior neste blog. 

Alimentação regular, descobrir o que desencadeia as crises, sono regular e nas horas certas, evitar estresse através de técnicas de relaxamento, parecem auxiliar no tratamento. 

Os famosos triptanos (sumatriptano, rizatriptano, naratriptano) usados no tratamento das crises de enxaqueca devem ser evitados, por provavelmente aumentar o riscos de derrames nestes pacientes (essa informação, apesar de ainda não totalmente provada, ainda consta em bula) (cheque aqui). Da mesma forma, os ergotamínicos. Ou seja, se você tem enxaqueca basilar (MATC), não use nenhum analgésico sem indicação médica.