terça-feira, janeiro 27, 2015

Terapia nutricional no AVC

Este artigo foi escrito pela Dra Ana Perdigão, nutricionista funcional, e gentilmente cedido ao blog Neuroinformação.


Para entendermos como a nutrição pode ajudar na recuperação de pacientes vítimas de AVC (e/ou preveni-lo), primeiro é necessário, rapidamente, explicar o que é o AVC.

A sigla significa uma doença neurológica chamada Acidente Vascular Cerebral (popularmente conhecida como Derrame). Basicamente, é uma lesão ou dano cerebral que pode ser de origem isquêmica (AVCI), quando um vaso sanguíneo está obstruído em alguma região do cérebro, ou de origem hemorrágica (AVCH), quando um vaso sanguíneo se rompe e há um sangramento ao redor ou dentro do cérebro. Qualquer uma das formas de AVC, causa diminuição do funcionamento cerebral, podendo resultar em danos graves ao cérebro. O AVC é uma das doenças neurológicas mais comuns, e, curiosamente a maioria dos casos é simples de prevenir ou evitar. 

O AVC isquêmico é o mais frequente. Os seus fatores de risco são a ingestão de álcool, sedentarismo, hereditariedade, tabagismo, alterações nos níveis de colesterol, estresse, obesidade, diabetes, hipertensão e uso de alguns medicamentos (ex: anticoncepcionais).

E como a nutrição pode ajudar na prevenção do AVC e na recuperação do paciente após um AVC?

Sabemos que uma alimentação equilibrada, por si só, diminui o risco de diversas doenças ou alterações em nosso organismo. Isso porque os nutrientes presentes nos alimentos são responsáveis por inúmeras (muitas mesmo!) funções dentro do nosso corpo e "conversam" com nossos órgãos e com a nossa mente.

Quando uma pessoa é diagnosticada com AVC, existe todo um protocolo e tratamento específico para minimizar os danos cerebrais e, claro, salvar a vida daquela pessoa. Infelizmente, muitos pacientes possuem algumas sequelas (alterações funcionais permanentes) deixadas pela lesão cerebral, como paralisia, dificuldade para falar, para pensar corretamente, para engolir ou fazer qualquer atividade diária. 

Nesse sentido, a nutrição é de extrema importância, tanto para melhorar a recuperação do organismo após a lesão súbita quanto para prevenir novos episódios e melhorar a qualidade de vida do paciente. A desnutrição é bastante comum em pessoas que sofreram um AVC, pois muitas possuem dificuldade para se alimentar (mastigar e engolir) e para verbalizar/falar o que desejam comer (e, por isso se recusam ou comem pouco a comida que não gostam). Muitos pacientes também apresentam, simultaneamente ou isoladamente, episódios depressivos, alterando ou diminuindo ainda mais o apetite e sensação de fome. 

Além do cuidado de assegurar um bom aporte de nutrientes ao paciente, deve-se também atentar para a qualidade/sabor, textura e temperatura dos alimentos. Normalmente, a consistência dos alimentos é mais pastosa e em temperatura ambiente ou morna, já que pela dificuldade em se alimentar, a comida pode permanecer mais tempo na boca, e alimento muito gelado ou muito quente causa desconforto e incômodo.

Cada caso deve ser avaliado individualmente. Lembremos que o olfato, paladar, visão e tato estão intimamente ligados ao ato de comer.  Todos, de alguma forma, despertam o interesse em se alimentar e esses sentidos são interpretados pelo nosso cérebro, e este gera uma resposta para o ambiente. Por exemplo: comida com aspecto bonito nos agrada em sentar para comer ou aquele cheiro que nos deixa com água na boca. E com a lesão cerebral, os sentidos podem estar prejudicados. 

Por vezes, é necessário alimentar o paciente por sonda. E, em alguns casos, administração endovenosa (pela veia). De qualquer forma, quando possível, é prioridade fazer o paciente se alimentar por via oral, que é a maneira mais fisiológica para nos nutrirmos. A suplementação é, quase sempre, indicada e prescrita, visto que as necessidades de nutrientes aumentam nesses casos, e a recomendação varia para cada pessoa. Uma avaliação criteriosa, desde sinais e sintomas, medicações (que podem interferir na absorção de nutrientes) até o preparo de refeições, feito por um nutricionista, é essencial para o sucesso do tratamento. 

Por fim, a nutrição é peça chave para a prevenção nos casos de AVC. Como citado acima, os fatores de risco são modificáveis, na maior parte das vezes, com a melhora dos hábitos de vida.

Existem recursos terapêuticos nutricionais, aliados à terapia com medicamentos, capazes de ajudar pacientes que sofreram um AVC. Quanto antes forem aplicados, por profissional especializado, melhores serão os resultados.


Dra Ana Perdigão - nutricionista funcional
Website: www.draanaperdigao.blogspot.com
Facebok: /draanaperdigao

sábado, janeiro 03, 2015

Como é mesmo o efeito da toxina botulínica?

A toxina botulínica pode facilmente ser considerada uma das substâncias do século. Apesar de cara, tem sido cada vez mais utilizada no tratamento de vários tipos de doenças e condições. A neurologia é a especialidade onde a toxina encontrou mais indicações.

Mas como é que a toxina botulínica (BnT) age?

Antes de sabermos a ação da BnT, vamos conhecer um pouco sobre a placa motora, a região onde o nervo se une com o músculo. 

Os músculos (e as glândulas, como as que produzem a saliva) não funcionam sem o aporte dos nervos periféricos. Para que um músculo contraia (e uma glândula produza substâncias), é necessário que haja a comunicação entre o nervo e o músculo através da placa mioneural (ou, no caso das glândulas, a conexão entre estas e os nervos). 

O músculo possui receptores, substâncias que recebem e permitem a passagem de outras substâncias, localizadas em suas membranas. A substância mais importante para a contração muscular chama-se acetilcolina (ou ACh), um neurotransmissor. 

Observe abaixo:

https://humanphysiology2011.wikispaces.com/file/view/fig._7.26.jpg/217817416/643x453/fig._7.26.jpg
Esta imagem acima, linda por sinal, demonstra um desenho esquemático de um receptor de ACh na superfície do músculo. Quando a ACh liga-se ao músculo, há a entrada de sódio e a saída de potássio da célula, o que desencadeia um potencial de ação e inicia a contração muscular (se interessar, leia mais sobre isso aqui).

Mas de onde vem a ACh? Vem dos nervos que estão em contato com a superfície do músculo. A ACh é produzida em certos núcleos e trafega até as terminações destes nervos, onde ela é colocada em vesículas (pequenas bolinhas) em quantidades enormes (quanta, plural de quantum), e é liberada no espaço entre o nervo e o músculo (fenda sináptica).

Observe abaixo:

http://classconnection.s3.amazonaws.com/116/flashcards/1707116/png/ach_receptor1349230261545.png

http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/thumb/5/57/1009_Motor_End_Plate_and_Innervation.jpg/330px-1009_Motor_End_Plate_and_Innervation.jpg


Não achei figura melhor para demonstrar isso do que essas aí em cima. 

As vesículas de ACh não vão, no entanto, para a membrana do nervo para serem liberedas de modo espontâneo, ou seguindo algum instinto mágico. Elas necessitam de outras substâncias que as ancorem e as puxem em direção à terminação do nervo para, finalmente, serem liberadas.

A essas moléculas chamamos de moléculas de ancoragem, e há várias delas. Observe abaixo:

http://www.ipsifar.rm.cnr.it/immagini/Sinaptyv%20vesicle2.JPG
Essas espirais coloridas que você vê acima são as representações esquemáticas de várias moléculas que puxam a vesícula de ACh em direção à fenda sináptica para liberação. Sem elas, a ACh fica parada, boiando dentro do terminal sináptico, e não sai para a fenda para se ligar aos receptores do músculo.

E aqui chegamos à nossa pergunta inicial. Como age a toxina botulínica?

Vamos ver a toxina mais de perto.

http://www.ebi.ac.uk/biomodels/ModelMonth/2010-08/fig1.png
Diga oi para a BnT. Ela possui duas cadeias, uma vele (light chain) e uma pesada (heavy chain), unidas por uma ponte de dois átomos de enxofre (S), ou ponte dissulfeto, extremamente frágil.

A BnT para funcionar precisa estar inteira. Por isso que ela tem de ser armazenada em geladeira e não pode ser muito balançada além do ideal para sua reconstituição em soro fisiológico quando preparada.

A cadeia pesada serve para abrir uma brecha dentro da terminação onde estão as vesículas de acetil colina. Quem age mesmo é a cadeia leve. E o que ela faz?? Justamente destroi as proteínas que puxam a ACh para se ligar à membrana. Ou seja, a BnT deixa as vesícular de ACh boiando dentro do terminal.

Observe abaixo:

http://www.studentpulse.com/article-images/uploaded/324_1.jpg
Na parte de cima da figura, a transmissão normal. Na parte de baixo, a transmissão com as proteínas de ancoragem destruídas pela BnT.

Há cerca de 7 sorotipos de BnT, de A até G. No Brasil usamos somente o tipo A. Nos EUA e Europa, usam-se os tipos A e B. E no Japão, pode ser utilizado o tipo F. Na figura abaixo, estão algumas das proteínas de ancoragem e as toxinas que agem sobre elas.

http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/thumb/8/8b/Presynaptic_CNTs_targets.svg/2000px-Presynaptic_CNTs_targets.svg.png
Muito bem. Espero que tenham entendido. Qualquer dúvida, não hesitem em contactar-se por email (sekeff@hotmail.com), ou postar no blog no Facebook.

Até outro post.

sexta-feira, janeiro 02, 2015

Neuromielite óptica ou doença de Devic (ou NMO)




Como sempre, antes de mais nada, um pouco de história.

A neuromielite óptica (NMO), ou doença de Devic, foi descrita inicialmente por Thomas Albutt, neurologista britânico, em 1870. No entanto, Eugene Devic, um médico francês, que emprestou seu nome à doença. Albutt observou a coexistência de inflamação da medula espinhal (mielite) e alterações no nervo que sai do olho, o nervo óptico (neurite), mas foi Devic que sumarizou os casos conhecidos juntamente com seus próprios casos em um congresso de medicina em 1894. Ele chamou a doença de neuromielite óptica, mas a partir de 1907, o nome doença de Devic começou a ser usado. 

A  NMO é uma doença inflamatória do sistema nervoso, onde a lesão ocorre preferencialmente na medula e nos nervos ópticos. Os sintomas referentes aos dois lugares não precisam ocorrer ao mesmo tempo, e há pacientes onde a mielite (ou a neurite) é o sintoma de apresentação. Mas há a necessidade de que ambos ocorram para o diagnóstico. E é claro que para o diagnóstico, há a necessidade de afastarmos outras causas, já que múltiplas doenças dão sintomas semelhantes aos da NMO.

Neurite óptica (NO) ocorre como primeiro sintoma em cerca de 56 a 76% dos pacientes. Já a mielite ocorre como primeiro sintoma em 13 a 39%, e a ocorrência simultânea de ambos como primeiro sintoma em 4 a 11% dos casos. Pode ser que o intervalo entre a ocorrência de NO e a de mielite seja de dias a anos. 

Geralmente o início do quadro é súbito, abrupto, e pode haver em mais da metade dos casos sintomas de febre, dor de cabeça e dores musculares, assemelhando-se a um quadro gripal ou resfriado, ou mesmo diarreia, antes dos sintomas específicos começarem. Na verdade, há especulações de que infecções virais, ou mais raramente bacterianas, poderiam preceder a doença (sugerindo uma relação causal, no entanto não provada).

A neurite óptica assemelha-se à da esclerose múltipla (EM) (leia mais sobre ela aqui). Já a mielite pode levar a perda de sensibilidade e de força nas pernas (e também nos braços). Sintomas mais raros, como soluços ou falta de ar súbitos, sem doenças aparentes fora do sistema nervoso, podem ocorrer. 

A doença pode ocorrer em um único surto (monofásica) em 32% dos casos, ou pode vir em múltiplos surtos (recorrente). 

Desde 1914, a NMO era considerada uma doença diferente da EM. Mas a partir de 1937, a doença começou a ser considerada uma variante de EM. Até 1999 em diante, quando estudos mais aprofundados determinaram que as causas de ambas são diferentes. A disputa foi terminada em 2006, quando critérios de diagnósticos propostos pela conhecida Clínica Mayo, nos EUA, determinaram as características em exames de sangue, líquor, e em imagens de ressonância magnética da NMO. 

A NMO exije alterações de imagem na ressonância magnética na coluna cervical, sendo que estas imagens são diferentes das da EM. Na EM, as lesões são pequenas, e geralmente relacionam-se a um segmento medular, enquanto que na NMO, as lesões estendem-se por 3 ou mais segmentos da medula. Veja as duas figuras abaixo. A figura de cima demonstra uma ressonância de um paciente com NMO, e a de baixo a de um paciente com EM.

http://img.medscape.com/fullsize/migrated/446/182/sn446182.fig1.gif
https://www.bioscience.org/2004/v9/af/1251/fig4.jpg
A NMO pode dar alterações na ressonância de crãnio, algo que acreditava-se não ser verdadeiro, mas as imagens são diferentes e menos específicas que as da EM.

A causa da NMO não é conhecida. Sabe-se ser a doença autoimune (produzida pelo ataque produzido pelo próprio sistema imunológico do paciente). Vários exames de outras doenças imunológicas, como lúpus e síndrome de Sjögren, podem vir positivos na NMO, o que demonstra a sua etiologia autoimune. No entanto,  há um exame que tem sido associado com a NMO que é o anticorpo contra uma proteína, na verdade um canal de passagem de água, chamada de aquaporina-4 (o nome do anticorpo é anti-aquaporina-4, ou anti-NMO). 

A associação com infecções, como pelos vírus herpes, tuberculose, vírus Epstein-Barr e mesmo HIV tem sido observada. Mas não há, ainda, provas de que um agente específico cause a doença, e é provável que muitos agentes infecciosos em combinação produzam o gatilho que desencadeia a doença.

Já com relação a fatores genéticos, ainda não há evidente.

A NMO è mais comum em mulheres (80% dos casos), e ocorre em uma idade mais tardia do que em pacientes com EM, mas pode ocorrer desde a adolescência até a vida adulta idosa. Ocorre em todas as raças, e é muito comum em japoneses.

Várias doenças podem se parecer com a NMO, como a própria EM, e várias outras doenças autoimunes, e o médico que acompanha e trata o paciente deve ter isso em mente, e procurar através do exame clínico, da história clínica, e de exames, dar o diagnóstico correto. 

O diagnóstico é feito através da suspeita clínica, a presença do anticorpo contra a proteína aquaporina-4 (disponível no Brasil, e que infelizmente só é positivo em 73% dos casos de NMO, mas quando positivo detecta corretamente 91% dos casos), ressonância magnética e análise do líquor espinhal. Claro que exames de sangue pode ser solicitados, a fim de afastarmos outras doenças. 

O tratamento é feito com drogas (medicações) que visam controlar a imunidade e combater a doença. As medicações usadas na EM (interferons e copaxone) não funcionam aqui. O tratamento deve ser discutido individualmente com o médico que assiste o paciente.